A madrugada começou com um suor frio que desceu pela última
fila de cabelo e se alojou na minha nuca. Onde eu não o via, só lhe adivinhava
a presença. Ele ali estava, num espaço que eu não vejo mas sei que é meu. A representação
física de medo. Levantei-me da cama com os pés de encontro à madeira, à procura
de algum chão, e caminhei até ao espelho mais próximo. O cabelo preso num amontoado
desmaiado no temporal, os olhos semi-abertos, pálida e acabrunhada, numa
ante-estreia matutina. A mão esquerda em suporte do peso anteriorizado e a mão
direita sobre o baixo-ventre. Liso. Não sei se respirei fundo para sorver o ar
do fim do esforço ou para me certificar de que este era o lado correcto da
vida. Ainda agora tinha acabado de dar à luz um bebé perfeitamente saudável, a
frase que mais repetidamente se ouve nas séries de têvê. Tiraram-mo. E eu
acordei. Acho que não suportei viver com a sequela desse acto. E então, boca a
arder de secura, bebi água. Engasguei-me com a vida. Tão inconscientemente
presente na banalidade das horas marcadas: andar, comer, trabalhar, farda,
tratar, dormir, fazer mais, correr, comer. Parar.
Parar.
PARAR.
Escutar.
Medo.
Silêncio.
Mais medo.
Eu. Sozinha. 29. Um sobressalto do ser. Dúvida. Melhor,
incompreensão. As ideias todas muito bem alinhadas e alinhavadas no curso da
minha história. Várias bocas a acrescentar a sua vírgula e eu a tentar juntar
tudo na minha vontade. A narração foi-se desfazendo e refazendo enquanto o meu
corpo tomava formas. Perdi-me logo no primeiro acto. Eu não tinha o guião. Devo
ter entrado na peça errada, subiram a cortina e eu tive de entreter o público
com uma representação que satisfizesse a mais exigente crítica - eu. Eu não
aplaudo. Apenas eu estava sentada na audiência, logo ali, na primeira fila. E
olhei-me de alto a baixo, com um ar apreensivo. Sem saber porque é que no meu
lugar estava uma rapariga tão séria, envergonhada e hesitante. Tinha um aspecto
interessante, boa figura, enchia o espaço com um olhar. Mas simplesmente não me
convenceu. Não tinha a graça espontânea a que me habituou e defraudou as minhas
expectativas. Eu que só queria ver honestidade. Senti-me sentida. Fui eu que
escolhi esta pessoa para me representar, uma péssima versão estilizada de mulher
que, sob um foco de luz, fez de tudo para se encher de si mesma e me
impressionar. O decréscimo ronceiro de espontaneidade na acção. Aquele olhar
franzido no final, à espera que eu lhe diga como fazer, se foi bom ou mão. Faço-te
um teste. Silêncio. Espaço. Auto-avaliação. Olho-me ao espelho mais uma vez.
Está do outro lado alguém que eu conheço. Tem sonhos. Corre, e não certeira de
lhes chegar a poder tocar, corre porque sente a brisa do vento fresco no rosto
e é livre de correr na direcção que quiser. Tem medo como eu, mas encolhe os
ombros e sorri-me. Retribuí quase em simultâneo.
Ainda há pouco me negavam uma vida. Uma nova vida, que nasce
dentro. Que não era como eu. Que levou uma palmada e chorou numa explosão
pulmonar, em manifesto de justa causa, no primeiro cumprimento ao mundo, a
apresentação sumária da existência foi sonora. Fez-se sentir. Voltei a
deitar-me. Mais serena. O amanhã está determinado.
Abri os olhos para um novo mundo. Já não está ninguém na
plateia.
Sem comentários:
Enviar um comentário
8s e 80s