29 de maio de 2011

O teu filho


Há-de correr em ziguezague pelo campo atrás do rasto de cores das asas das borboletas. Vai apanhá-las e abrir muito os olhos a tentar perceber o movimento frágil das asas, contemplando o mistério da vida entre as mãos. Vai apanhar bichos-da-seda e escondê-los em caixas esburacadas com a ponta de uma caneta, espreitando todos os dias a antever os casulos. Vai fazer desenhos pequenos que vais trocando de mês a mês nas divisórias da carteira. Vai dar aqueles abraços apertados no pescoço e dizer que gosta de ti. Vai cair da bicicleta e chorar muito com a marca no joelho que vai ficar para toda a vida mas que o vai lembrar que no outro dia conseguiu subir ao topo da nespereira e trazer à mãe as melhores nêsperas, as que ainda não foram bicadas pelos pardais.
Vai ler os livros dos Cinco com o chapéu a três quartos, horas a fio, deitado na relva. Vai adormecer nas viagens para Arganil e perguntar se falta muito. Vai partir algumas caixas dos teus CDs e aborrecer-te com “porquês”. Vai levar uma palmada quando atravessar a estrada a correr e chorar com a força da vergonha. Vai virar-te as costas e depois dar-te a mão.
Vai sair da escola contente porque o teste de História correu muito bem. Vai fabricar outros mundos com os amigos porque este nunca vai ser suficiente. Vai sonhar, inventar-se, ordenar o movimento dos astros e do futuro. Sempre com uns grandes olhos de amêndoa a exalar orgulho no Pai.

14 de maio de 2011

Dazed and confused


Agora olha-se, compra-se a imagem, deve assentar bem. Soltam-se suspiros, agarra-se o êxtase em 5 minutos de enlace. Trocam-se ideias e companhia para o jantar. Planeia-se. Sonha-se. Amanhã apercebemo-nos que temos mais que fazer. Há aquele projecto inadiável, o tempo dividido para outras coisas. Temos de dar um tempo. Não és tu, sou eu. Acaba-se. Não se volta a olhar. Entra-se em alívio. Ainda bem que “isto” não foi adiante. Arranjam-se justificações para perceber que afinal fizemos bem. Chora-se. Fuma-se. Remenda-se o coração. Segue-se em frente. Caminha-se sozinho em piloto automático, faz-se o que se tem a fazer. Eu não sei se acredito no amor, naquele forte que leva tudo à frente, que permite que tudo o resto se faça com a leveza dos apaixonados. E reparem na leviandade com que escrevo amor. O amor, com letra minúscula. Porque é um substantivo, afinal. Nomeia aquilo a que os menos nobres de espírito não podem ascender - as pessoas que têm que fazer, que empunham as bandeiras do “amanhã” e se concentram nos prazos. Que é palpável ter um emprego e um projecto de vida. Que é mais atingível do que encontrar “aquela pessoa”. E deixa-se passar o amor ao lado. Onde é que foste? Ainda agora aqui estavas, ia jurar que te senti no fundo do peito. O telemóvel tocou mais que vinte vezes ao dia. Isso era bom sinal, não era?
O amor não pode ser isto.
Poderá encaixar-se esta denominação num tempo em que tudo é descartável? Usa e deita fora. Fabrica-se a imagem daquilo que o outro vai desejar. Há desejo mas mais que isso não que dá trabalho, e depois há o meu trabalho, o verdadeiro. E já é muita coisa para mim que duas ao mesmo tempo fazem-me enxaquecas. Sou muito nova para isto que as hormonas estão em ebulição, hoje és tu e amanhã não sei que o outro também me achou interessante. Olha, amo dois e pronto. Mas isto também não pode ser amor, que se quebra a correspondência de 1 para 1 e entra o “outro” na equação. Às vezes não há outro, só que não resultou. Foi a fórmula errada. Mente-se mais um bocadinho porque se está confuso. Sonhou-se alto, o amor é demais para o que se pode neste momento. Não entraste na minha vida quando devia ser, mas que chatice, nunca acerto nos timings.
Não. O amor não é isto.
O amor é ignorar isto tudo e saber o que é o amor assim que se encontra. É desejar que o amanhã venha sempre “connosco” na equação. É não contabilizar e não planear. Que não se coaduna este querer com fórmulas. É saber que não é todos os dias que “isto” acontece. É não precisar de mais nada senão a certeza de estares aqui. E depois há o resto que ficou tão melhor depois de apareceres. É permissão, confiança, deixar que aconteça, embarcar de olhos fechados. São inúmeras metáforas para te dizer que o amor foi o hipotético futuro que deixámos passar entre os dedos, enquanto ele acontecia mais lento que o resto da nossa vida de obrigações que corria desalmadamente contra a corrente dos nossos sentimentos.