7 de março de 2015

Graça



Esta Graça é minha. Nunca hei-de compreender a amplitude de todos os azulejos e buracos da calçada quando me atrevo na Rua das Beatas. Todos os dias os planos mudam nas equações celestes pelas quais se rege Lisboa. Ainda ontem aquele prédio não era tão amarelo. Se a minha rua fosse um tabuleiro os peões jogavam a preto e branco mas também em azul e verde. A cartografia das vidas exige uma determinada sépia quase involuntária, a que não temos acesso fácil. Insinua-se no canto dos olhos em socalcos onde sabes que correram lágrimas. Nos cumprimentos apertados em demora. Nos colarinhos engomados a preceito. Naquele olhar de soslaio da vizinha do rés-do-chão. Ou no cândido “Bom dia, como tem passado?” do bêbado que, de manhã, sai de casa fresco e volta em angulação triangular do corpo com o vão de escada. As camadas de castanho dissolvem-se a cada renovado acordar porque a luz de Lisboa obriga até os velhos a articular em todos os tons. Esta cidade agita-nos muito cedo. Começa com um ranger de madeira velha. Mas rapidamente trepida nos paralelos, exala no cheiro a pão fresco. Invade. Entra pela tua casa a dentro com o sol para se acomodar em ti e te moldar os sentidos. Lisboa é feito de luz e sombra. Mas mais luz. Buzina. Falta alto. Ora carrega nos érres ora diz ou-câi. Restolha. Floresce nas amendoeiras. Pinga das fontes.
Estou sentada num banco castanho. A sépia é isto. É secular. Já cá estava antes. Fundou a esteia do que é hoje. Alguém que nasceu noutra parte do mundo sentou-se ao meu lado. É uma rapariga bonita que me sorriu. Agora que respiramos o mesmo ar, podemos estar dentro do mesmo retrato. Lisboa é nossa. É errado pensar que poderia ser apenas minha só porque demoro mais a minha vida nela. Gastamos todos as solas no seu corpo e ela deixa-se pisar. Pensamos nós. Apenas somos atraídos pela gravidade autónoma que recusamos reconhecer-lhe. Lisboa só tinha que ser uma mulher.
À medida que o sol queima os últimos cartuchos e dobram os sinos no miradouro, acorremos todos aonde ainda se espalha a cor. Marchando em direcção à vida, com pressa de nos extinguirmos em luz, antes que a noite nos absorva e todos voltemos à cegueira sentenciada pelos bairros. À noite manda a Severa, uma Lisboa rendilhada que te oferece copos de vinho tinto.
Sigo mais a sul, onde as ruas deixam de ter Graça. Volto mais tarde, emparedada em ti para que me beijes o corpo com o veludo de uma noite breve.

6 de março de 2015

Efemérides feministas



E agora vamos todos cantar uma ode às mulheres.
Queremos mesmo ser iguais? Ou passou isto a ser apenas uma ridícula busca de aceitação? Ser igual não é bom, minhas senhoras. É um desastre. Aliás, é por não sermos iguais, numa primeira instância, que existe uma fusão de gâmetas que permite que andemos a povoar o planeta. Mas posso até deixar-me de fazer referência às óbvias diferenças físicas e palpáveis. Qual é mesmo a razão pela qual queremos ter um salário melhor? Porque merecemos ou porque queremos largar um infernal “incha porco” assim que consigamos os mesmos direitos financeiros? Queremos ser pénis de saltos altos, é o que me parece. Não me considero melhor nem pior que nenhum homem, ou que nenhuma mulher. Quando saio de casa para trabalhar vou convicta de que aquilo que eu vou fazer vai mudar a vida de muitos homens e mulheres. À semelhança de muitos homens, presumo, meus semelhantes. E semelhança não é igualdade.
Esta semana ouvi uma senhora de idade dizer: “Não se pode falar a verdade aos homens. Podemos dizer a verdade em tom de brincadeira e desmenti-la logo de seguida. Dizer – acha que eu estava mesmo a falar a sério?”. Riu-se timidamente. Depois assumiu um ar pensativo e até um pouco comiserativo… “Porque eles vão assustar-se quando falarmos a sério. Não se pode dizer a verdade aos homens, eles não estão preparados para ouvir”.
Será por isso que eu tenho tanta dificuldade em dizer: “Gosto de ti?”. Em sentir. Às vezes quem usa os túbaros sou eu. Ganho mais. Trabalho mais. Tenho mais. Penso mais. Atrevo-me mesmo a dizer que sou melhor em muitos aspectos. A verdade é que eu gostava que alguém, um homem, neste caso, me acompanhasse e construísse um projecto de vida comigo. Me aceitasse em toda esta minha capacidade de fazer por mim e chegar a algum lado.
Ser feminista ainda não me ajudou em absolutamente nada. Ainda não chegou o homem que me provasse que tem sido uma perda de tempo sê-lo. Que me tirasse os saltos altos, me deitasse no colo e dissesse ao meu ouvido: “Podes ser frágil de vez em quando comigo”. Só aí é que eu vou sentir-me igual. Perdão. Semelhante.