10 de janeiro de 2015

Reflexo


A madrugada começou com um suor frio que desceu pela última fila de cabelo e se alojou na minha nuca. Onde eu não o via, só lhe adivinhava a presença. Ele ali estava, num espaço que eu não vejo mas sei que é meu. A representação física de medo. Levantei-me da cama com os pés de encontro à madeira, à procura de algum chão, e caminhei até ao espelho mais próximo. O cabelo preso num amontoado desmaiado no temporal, os olhos semi-abertos, pálida e acabrunhada, numa ante-estreia matutina. A mão esquerda em suporte do peso anteriorizado e a mão direita sobre o baixo-ventre. Liso. Não sei se respirei fundo para sorver o ar do fim do esforço ou para me certificar de que este era o lado correcto da vida. Ainda agora tinha acabado de dar à luz um bebé perfeitamente saudável, a frase que mais repetidamente se ouve nas séries de têvê. Tiraram-mo. E eu acordei. Acho que não suportei viver com a sequela desse acto. E então, boca a arder de secura, bebi água. Engasguei-me com a vida. Tão inconscientemente presente na banalidade das horas marcadas: andar, comer, trabalhar, farda, tratar, dormir, fazer mais, correr, comer. Parar.
Parar.
PARAR.
Escutar.
Medo.
Silêncio.
Mais medo.
Eu. Sozinha. 29. Um sobressalto do ser. Dúvida. Melhor, incompreensão. As ideias todas muito bem alinhadas e alinhavadas no curso da minha história. Várias bocas a acrescentar a sua vírgula e eu a tentar juntar tudo na minha vontade. A narração foi-se desfazendo e refazendo enquanto o meu corpo tomava formas. Perdi-me logo no primeiro acto. Eu não tinha o guião. Devo ter entrado na peça errada, subiram a cortina e eu tive de entreter o público com uma representação que satisfizesse a mais exigente crítica - eu. Eu não aplaudo. Apenas eu estava sentada na audiência, logo ali, na primeira fila. E olhei-me de alto a baixo, com um ar apreensivo. Sem saber porque é que no meu lugar estava uma rapariga tão séria, envergonhada e hesitante. Tinha um aspecto interessante, boa figura, enchia o espaço com um olhar. Mas simplesmente não me convenceu. Não tinha a graça espontânea a que me habituou e defraudou as minhas expectativas. Eu que só queria ver honestidade. Senti-me sentida. Fui eu que escolhi esta pessoa para me representar, uma péssima versão estilizada de mulher que, sob um foco de luz, fez de tudo para se encher de si mesma e me impressionar. O decréscimo ronceiro de espontaneidade na acção. Aquele olhar franzido no final, à espera que eu lhe diga como fazer, se foi bom ou mão. Faço-te um teste. Silêncio. Espaço. Auto-avaliação. Olho-me ao espelho mais uma vez. Está do outro lado alguém que eu conheço. Tem sonhos. Corre, e não certeira de lhes chegar a poder tocar, corre porque sente a brisa do vento fresco no rosto e é livre de correr na direcção que quiser. Tem medo como eu, mas encolhe os ombros e sorri-me. Retribuí quase em simultâneo.
Ainda há pouco me negavam uma vida. Uma nova vida, que nasce dentro. Que não era como eu. Que levou uma palmada e chorou numa explosão pulmonar, em manifesto de justa causa, no primeiro cumprimento ao mundo, a apresentação sumária da existência foi sonora. Fez-se sentir. Voltei a deitar-me. Mais serena. O amanhã está determinado.
Abri os olhos para um novo mundo. Já não está ninguém na plateia.

1 de janeiro de 2015

Pôr-do-sol visto da minha janela



Há algo de amargo neste fim que tarda na boca e no peito. O cenário muito desenquadrado. Miopias do coração. Não vejo o fim que já terminou. Mas também não sei onde começa o início. Sei que tracei o futuro e deixei-te pendente no ponto final das minhas palavras. Equilibrado nessa bolinha preta que é um ponto final. Ainda tentaste controlá-la por algum tempo. Mas magoaste-te no último passo de malabarismo. Depois de tudo, já te abracei tantas vezes, deitei a tua cabeça no meu colo e disse-te que tudo ia correr bem. Despenteei-te a melena só para a ordenar de novo. E falei-te do futuro com certezas e determinação. Parecia eu e tudo. E parecias tu, sossegado no embalo dos meus braços. Tranquilos. Mas quando abro os olhos e tento ver o enquadramento, procuro-te dentro da moldura e não estás. Fui eu que desenhei outra coisa. Onde só se vê o sol ao fundo e o meu pé à frente do outro. Tu não estás. Ficaste atrás a dizer-me um adeus muito contido. Ficaste pequenino à medida que eu avancei. Guardaste contigo os meus dias seguros, os meus passos em ziguezague, a minha forma estranha de misturar o açúcar no café e o pouco jeito que tenho para sorrir quando acordo. Promete que um dia abres essa caixinha e deixas que voltem para mim. Para que eu possa ser eu só com a nossa doce memória. A saudade é um sentimento que dói mais que os outros todos. Mais que o amor. Provavelmente irias contrariar-me. Mas eu sei que assim é. A saudade só existe porque o passado foi bom e porque não pode voltar-se atrás e remendar-se. O remendo é sempre uma aproximação esquisita ao antigo, ao primeiro instante. Antigamente, quando tínhamos os relógios acertados, os ponteiros agiam a favor do tempo. Eu corri. Corrijo. Fugi. E o tempo parou, suspenso num momento voltado para dentro, para o mais fundo de mim. Ninguém sabe onde ele fica e eu fechei-te a porta. Não estou preparada para a abrir. Quero ficar em casa só, mercê do silêncio das paredes que ergui. A cada gaveta que abro vejo uma falha na construção.. Descubro que não sou perfeita e que nem sempre sei fazer o bem, como eu via nos desenhos animados. E eu que julguei que nunca mais me esquecia. Gostar de ti não chega para te dar a chave. Não agora. Agora que eu acho que posso gostar de mim aqui dentro, com as minhas gavetas cheias de mim, bonita ou feia. Com aquela janela onde vejo o sol. E sei que posso pôr um pé à frente do outro, sem te dar a mão. Mas a sorrir-te. Na eternidade que só a ternura permite.