À entrada, movimenta-se em rosa desbotado uma criança sobre um baloiço, devagarinho para que lhe não caia a caliça da face ou não se lhe quebre a trepadeira que lhe cobre o vestido. Oiço já as gargalhadas em atropelo e o ranger da garvilha sobre as botas e as sapatilhas. Era a isto que soava a alegria aos domingos de manhã. Apertas-me a mão com força, sempre teimaste em ir devagar. Finalmente libertas-me. Desato numa correria, baloiços, escorregas, sobe-e-desce. Pinotes, cambalhotas e saltos. Não conheço nenhuma criança, por isso não me deixas sozinha e amparas-me, seguras-me, vigias-me, cuidas para que não caia. Ainda hoje é assim.
Às vezes não entro no teu quarto porque sei que estás a ler. Mas quando não estás vou espreitar as palhetas, quantas cores terão? Há sempre um cheiro abafado de papel folheado. Observo as lombadas dos livros, vejo os temas que não compreendo e que nunca lerei. Porque o alcance do teu olhar tem uma lonjura a que o meu não acede.
Guardei-te o pacote de bolachas! Espero que saibas apreciar que não vou contar à mãe que os comes todos. Sei que sim porque ainda ontem me explicaste tudo o que precisava de saber sobre os Descobrimentos, porção de História que a avó gostou de ouvir, entre duas porções de nêsperas. Já me esquecia, há bombocas no frigorífico!
Há simbioses feitas de ajustes de contas, dar e receber, apertar as mãos com força e correr. Brincar. Crescer. Mudar e ficar tudo na mesma. Ir além sem sair do lugar. Eu sei que me compreendes. Ainda hoje é assim.
Numa qualquer manhã, um qualquer ser,
ResponderEliminarvindo de qualquer pai,
acorda e vai.
Vai.
Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;
nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.
E em seu impessoal desejo latejam todos os restos
de quantos desejos ficaram antes por desejar.
Abre os olhos e vai.
Vai descobrir as velas dos moinhos
e as rodas que os eixos movem,
o tear que tece os linhos,
a espuma roxa dos vinhos,
incêndio na face jovem.
Cego, vê, de olhos abertos.
Sozinho, a multidão vai com ele.
Bagas de instintos despertos
ressumam-lhe à flor da pele.
Vai, belo monstro.
Arranca
as florestas com os dentes.
Imprime na areia branca
teus voluntariosos pés incandescentes.
Vai.
Segue o teu meridiano, esse,
o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;
o plano de barro que nunca endurece,
onde a memória da espécie
grava os sonos imortais.
Vai.
Lábios húmidos do amor da manhã,
polpas de cereja.
Desdobra-te e beija
em ti mesmo a carne sã.
Vai.
À tua cega passagem
a convulsão da folhagem
diz aos ecos
"tem que ser";
o mar que rola e se agita,
toda a música infinita,
tudo grita
"tem que ser".
Cerra os dentes, alma aflita.
Tudo grita
"tem que ser".
(Estrela da Manhã, António Gedeão)