15 de agosto de 2010

Irmão

À entrada, movimenta-se em rosa desbotado uma criança sobre um baloiço, devagarinho para que lhe não caia a caliça da face ou não se lhe quebre a trepadeira que lhe cobre o vestido. Oiço já as gargalhadas em atropelo e o ranger da garvilha sobre as botas e as sapatilhas. Era a isto que soava a alegria aos domingos de manhã. Apertas-me a mão com força, sempre teimaste em ir devagar. Finalmente libertas-me. Desato numa correria, baloiços, escorregas, sobe-e-desce. Pinotes, cambalhotas e saltos. Não conheço nenhuma criança, por isso não me deixas sozinha e amparas-me, seguras-me, vigias-me, cuidas para que não caia. Ainda hoje é assim.

Às vezes não entro no teu quarto porque sei que estás a ler. Mas quando não estás vou espreitar as palhetas, quantas cores terão? Há sempre um cheiro abafado de papel folheado. Observo as lombadas dos livros, vejo os temas que não compreendo e que nunca lerei. Porque o alcance do teu olhar tem uma lonjura a que o meu não acede.

Guardei-te o pacote de bolachas! Espero que saibas apreciar que não vou contar à mãe que os comes todos. Sei que sim porque ainda ontem me explicaste tudo o que precisava de saber sobre os Descobrimentos, porção de História que a avó gostou de ouvir, entre duas porções de nêsperas. Já me esquecia, há bombocas no frigorífico!

Há simbioses feitas de ajustes de contas, dar e receber, apertar as mãos com força e correr. Brincar. Crescer. Mudar e ficar tudo na mesma. Ir além sem sair do lugar. Eu sei que me compreendes. Ainda hoje é assim.

1 comentário:

  1. Numa qualquer manhã, um qualquer ser,
    vindo de qualquer pai,
    acorda e vai.
    Vai.
    Como se cumprisse um dever.

    Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;
    nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.
    E em seu impessoal desejo latejam todos os restos
    de quantos desejos ficaram antes por desejar.

    Abre os olhos e vai.

    Vai descobrir as velas dos moinhos
    e as rodas que os eixos movem,
    o tear que tece os linhos,
    a espuma roxa dos vinhos,
    incêndio na face jovem.

    Cego, vê, de olhos abertos.
    Sozinho, a multidão vai com ele.
    Bagas de instintos despertos
    ressumam-lhe à flor da pele.

    Vai, belo monstro.
    Arranca
    as florestas com os dentes.
    Imprime na areia branca
    teus voluntariosos pés incandescentes.

    Vai.

    Segue o teu meridiano, esse,
    o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;
    o plano de barro que nunca endurece,
    onde a memória da espécie
    grava os sonos imortais.

    Vai.

    Lábios húmidos do amor da manhã,
    polpas de cereja.
    Desdobra-te e beija
    em ti mesmo a carne sã.

    Vai.

    À tua cega passagem
    a convulsão da folhagem
    diz aos ecos
    "tem que ser";
    o mar que rola e se agita,
    toda a música infinita,
    tudo grita
    "tem que ser".

    Cerra os dentes, alma aflita.
    Tudo grita
    "tem que ser".

    (Estrela da Manhã, António Gedeão)

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