Esta Graça é minha. Nunca hei-de compreender a amplitude de
todos os azulejos e buracos da calçada quando me atrevo na Rua das Beatas.
Todos os dias os planos mudam nas equações celestes pelas quais se rege Lisboa.
Ainda ontem aquele prédio não era tão amarelo. Se a minha rua fosse um tabuleiro
os peões jogavam a preto e branco mas também em azul e verde. A cartografia das
vidas exige uma determinada sépia quase involuntária, a que não temos acesso
fácil. Insinua-se no canto dos olhos em socalcos onde sabes que correram
lágrimas. Nos cumprimentos apertados em demora. Nos colarinhos engomados a
preceito. Naquele olhar de soslaio da vizinha do rés-do-chão. Ou no cândido
“Bom dia, como tem passado?” do bêbado que, de manhã, sai de casa fresco e
volta em angulação triangular do corpo com o vão de escada. As camadas de
castanho dissolvem-se a cada renovado acordar porque a luz de Lisboa obriga até
os velhos a articular em todos os tons. Esta cidade agita-nos muito cedo.
Começa com um ranger de madeira velha. Mas rapidamente trepida nos paralelos,
exala no cheiro a pão fresco. Invade. Entra pela tua casa a dentro com o sol
para se acomodar em ti e te moldar os sentidos. Lisboa é feito de luz e sombra.
Mas mais luz. Buzina. Falta alto. Ora carrega nos érres ora diz ou-câi.
Restolha. Floresce nas amendoeiras. Pinga das fontes.
Estou sentada num banco castanho. A sépia é isto. É secular.
Já cá estava antes. Fundou a esteia do que é hoje. Alguém que nasceu noutra
parte do mundo sentou-se ao meu lado. É uma rapariga bonita que me sorriu.
Agora que respiramos o mesmo ar, podemos estar dentro do mesmo retrato. Lisboa
é nossa. É errado pensar que poderia ser apenas minha só porque demoro mais a
minha vida nela. Gastamos todos as solas no seu corpo e ela deixa-se pisar.
Pensamos nós. Apenas somos atraídos pela gravidade autónoma que recusamos
reconhecer-lhe. Lisboa só tinha que ser uma mulher.
À medida que o sol queima os últimos cartuchos e dobram os
sinos no miradouro, acorremos todos aonde ainda se espalha a cor. Marchando em
direcção à vida, com pressa de nos extinguirmos em luz, antes que a noite nos
absorva e todos voltemos à cegueira sentenciada pelos bairros. À noite manda a
Severa, uma Lisboa rendilhada que te oferece copos de vinho tinto.
Sigo mais a sul, onde as ruas deixam de ter Graça. Volto
mais tarde, emparedada em ti para que me beijes o corpo com o veludo de uma
noite breve.
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