16 de outubro de 2010

“Enquanto houver estradas para andar, a gente vai continuar”

Chega-te à mesa. Senta-te (…). Senta-te Carlos. Pode ser aí nessa cadeira (…). Mais couves? Põe-lhe água que ele gosta assim, como a Sara.

Tenho por hábito ter o cuidado de te ser minimamente reverente. Essa hesitação entre silêncios e curtas intervenções… educou-me algumas vezes. É preciso perceber que cada ruga da tua testa tem uma história para contar. E que os teus olhares são carregados de significância e querem dizer alguma coisa. São certeiros e incisivos. Radicam na visão do mundo e das pessoas, das coisas, dos locais, dos sentimentos, da relação entre tudo isto e da importância relativa de cada um, em cada momento e dependendo do contexto. Intriga-me a forma como olhas de baixo para cima, em jeito de timidez, e vês tudo de cima para baixo, com o jeito de um erudito. E o que eu vejo não sei se foi inventado por mim ou pela erosão do tempo e das memórias. Havia revistas velhas na cave, num armário castanho de caruncho e desequilíbrio, à direita, com uma chave perra que teimava em não me deixar ler-te. E o Avante acumulava-se entre o pó, como uma coluna que cresceu com a pujança da idade e te deu espinha dorsal. “Não mexas nisso que isso é do teu tio e ele não quer isso estragado”.

Espera, volto já.

“Mãe, o que é que te lembras que fosse assim característico do tio?” “Lembra-me que a avó escondia umas moedas por baixo dos panos da louça e um dia ele foi lá e roubou-as todas. Acho que foi para andar no carrossel!” E diz isto com um ar satisfeito, só ela deve ter sabido, presumo. “E gostava de ver as corridas de carros… o avô chamava-lhe o maluquinho dos carros”.

Olha, fiquei na mesma.

Lembro-me melhor que quando me davas a mão era com muita força, que de dez em dez minutos abrias a porta do quarto para ver se estava tudo bem, e a casa das barbies ainda ia a meio, que não se nada para fora de pé em busca de coisas materiais. Mas sei que foste para fora concretizar algumas coisas imateriais que te conferem um grau, para além do parentesco óbvio. Que a Rússia deve ter cores magníficas e Paris deve cheirar a chique. Sei que devemos comer um gelado quando nos apetece e que em Tróia se tempera comidas com ervas da Arrábida. E quando era miúda disseste-me “não sejas hipócrita”, uma outra vez que esperavas que as National Geographic me abrissem “novos e belos horizontes” e desejaste-me “felicidades” inúmeras vezes. E tudo isto pesa. E quando cai molda a natureza das coisas e as minhas ideias. E há um peso nas palavras. E tu não sabes que quando tu falas até o meu coração bate mais baixinho para te ouvir.

1 de outubro de 2010

Eu falto, tu faltas, ele falta, nós faltamos, vós faltais, eles faltam

Já acudi a tudo e todos. Sequei. Não tenho mais para vos dar.
Falta aquele telefonema só mesmo para saber “está tudo bem contigo?”.
Falta o pingo de sorte.
Falta a festa na cabeça quando a razão já não consegue explicar porquê. “Não faz mal estares triste, eu gosto de ti, vai correr tudo bem, tu não tens culpa”.
Eh pá, mas estamos vivos, a vida são dois dias e o carnaval são três e este ano já não há! A sério? Mas que perspicácia! Vai-te foder. Arranja uma espinha dorsal, depois um mínimo de respeito pelos outros.
Se calhar o que falta é eu fingir também que sou autista, que é para não nos sentirmos uns aos outros, que quando se vive alheado da realidade é bem melhor porque se põe uma máscara e agora sim, é o carnaval, mas dos bonitos, de Veneza, que é tudo às cores e sofisticado. Os problemas são para trás das costas, quando deviam estar a ser resolvidos à frente de todos.
Era só o que me faltava.
E quando os outros precisaram não lhes faltou nada… Então porque razão estarei eu sozinha? Lá está a razão, se calhar nem há nenhuma, é só mesmo porque é assim e está na hora de regurgitar sapos entalados.
Porque isto da humanidade é tudo muito bonito, mas na verdade andamos todos cá é pela sobrevivência e não faz mal magoarmos os outros, porque se isso for um degrauzinho no “meu capital social” tanto melhor.
Onde é que foram os meus amigos?