25 de outubro de 2009

Xibalba



Consigo ver-te ainda com um avental de flores debotado. A mesa da cozinha vive de cores e cheiros que nascem à medida que tricotas o almoço. Dás vida a uma espaço, dás-nos vida, nós que observamos atentos a tua mestria, tão humilde, tão doce, tão despida de maldade. As tuas mãos são muito sulcadas como a terra molhada que a chuva fustigou, os dedos grossos como os troncos de uma grande árvore velha, os teus olhos brilhantes e profundos como um sol que não tarda em pôr-se. Como tudo está no seu sítio! Os azulejos são brancos, povoados de quando em vez por frutas pálidas, desvanecidas pelo tempo. Passo os olhos pela máquina de coser, ainda lá estão as linhas e os retalhos de tecido. Um triângulo vermelho onde vais pousando a agulha cansada, um rádio-tv cujos botões encravam por falta de uso, mas que fica aí bem, à esquerda, a dar início a uma prateleira de cacos coloridos. É difícil entrar na cozinha. A cómoda onde puseste as fotografias dos teus netos e os santinhos não deixa margem de manobra. Ali estão também, colados à parede com fita gomada castanha, os desenhos que vamos fazendo, são sonhos nossos que pintam o teu lar, que vão preenchendo com cor os espaços cinzentos da tua vida, quando olhas para eles à noite, a meio da reza. Ensinas-me o melhor truque de todos para fazer pastéis e fico vexada ao saber que ainda hoje não aprendi. Ensinas-me o que sabes, o que aprendeste e o que não sabes mas pensas estar correcto. Nascem em mim valores. “Olha para ti, fica por aí, ouve dos outros, escuta de ti”. O almoço está pronto, são minutos em que te conto o meu dia, tu ouves como se fosse a primeira estória, como se fosse bela. Nunca perdes o fio à meada mas olhas para ver se o prato está a ficar vazio. Tu gostas das minhas palhaçadas, dos meus desenhos, das boas notas dos meus testes e da cor dos meus olhos (são iguais aos da tua mãe), gostas de ser minha avó. Eu gosto da tua comida, do teu avental amaciado pelo tempo, de três ou quatro cabelos que se mexem por detrás da haste dos óculos quando esboças um sorriso, eu gosto de ser tua neta.
Continuava a desenhar-te os meus sonhos, a fazer as minhas macacadas, a recortar pastéis de massa tenra com o copo branco, se pudesse. Não posso fazer essas coisas. Mas vejo-te sempre assim, ainda que não possa dar-te a mão e dizer-te que hoje estive a trabalhar e com sorte consigo tirar a carta este ano. O curso está quase no fim, um dia hei-de casar e ser muito feliz e ter uma casa assim como a tua, cheia de carinho, com uma família que há-de ser sempre aquela, para o bom e o pior.
Não quero ver-te fria, em tons de branco e rosa, resumida a um nome esculpido a escopro e martelo. Prefiro saber que andas por cá como uma névoa transparente e apaziguadora, nas decisões da vida, nos rumos, nas atitudes. Porque tu não és um resumo, és uma estória inacabada que começa agora em mim.