14 de abril de 2009

A caixa de pinho


Este é um texto particularmente difícil para mim, na medida em que os factos que lhe dão corpo moldaram para sempre a minha percepção do mundo e de mim mesma. A efemeridade da vida e dos laços é uma ideia tão francamente decepcionante...


Fiquei parada no centro da sala…minto, no centro da minha incredulidade…Quando olhei para ela, estava numa caixa de pinho, vestida de preto, ironicamente coberta com um véu branco. Não ri, não chorei, parei. Os pensamentos tentaram tecer uma justificação mas formou-se em emaranhado de fios de raiva, tristeza, mágoa e tudo o que me pôs a chorar desalmadamente, no sentido literal do termo. Corri para fora da capela, tentei fugir daquilo tudo. Dali até à Rua [...] eram dois minutos e se eu corresse o mais rápido que conseguisse talvez ela ainda lá estivesse à minha espera com uma costeleta de porco, batatas fritas e alhos na borda do prato, como só a minha avó sabia que eu gostava.


14/01/2004

7 de abril de 2009

A eterna dúvida do albergado



Desci a Rambla pelos intrincados passeios de velhas edificações, maciças como o tempo, velhas como o tempo, esquecidas pelo tempo, passando por um tempo em que o tempo escasseia. Como o meu. Mas ali perdi o tempo, e foi muito bem aproveitado. O chão gasta-se sob uns pés catalães, de coração cheio de pátria, agarrando o resto de história que se esfuma por entre pessoas e pessoas e pessoas que não pertencem a Barcelona. Só eu me sinto de cá, tento absorver a história e por momentos julguei poder dar as mãos ao senhor de camisa às riscas e à senhora de sapatos beijes e bailar com eles aquela música. Celebrar o sol ou dizer adeus, a eterna dúvida do albergado. Mas fiquei sentada ao pé da tuba celebrando apenas o sol. Ah Sardanas! Quem me dera que fôssemos todos assim, de mãos unidas e fizéssemos um círculo de aço e fôssemos invencíveis e tivéssemos a liberdade na ponta dos pés, brincando livre no pó da rua. Com este espírito de união entrei na Catedral e assisti ao encerrar da missa. O espaço é tão grande e eu sou tão pequena. Oravam um dialecto que eu conhecia como a música da tabuada; por momentos pensei que sim, que era verdade, que toda aquela gente, eu incluída, ainda íamos parar ao Céu, onde iríamos ser todos felizes. Senti-me absolvida de ser humana. Estava livre. E no entanto regressava à Terra e, ao aperceber-me da arquitectura circundante, voltava à minha condição de “gente” e sentia-me de novo pequena. Porque grande era o sonho que habitava aquela casa e eu não era capaz de abarcá-lo no meu coração. Olhei outra vez para cima. Se isto tudo é verdade, “está tudo bem contigo avó? Olha, estou em Barcelona, a estudar e a viajar. Tens tempo agora de fazer tudo o que não fizeste em vida? Espero que já tenhas aprendido a ler, que continues a tecer as tuas camisolas de lã sob os teus óculos que costumavam reflectir sabedoria e agora só me reflectem os meus olhos chorosos. Já preguei botões aqui. Estudei, que para mim é. Cantei quando estive triste e sorri quando estive alegre. Estás a olhar por mim? Tenho saudades tuas. O meu tempo escasseia, tão rápido que não tive tempo de saber mais, de aprender mais contigo. Mas aprendi aquilo que é universal, a tratar bem toda a gente. Com vários apertos de mão e “à la paz de Cristo” disse adeus. Mas não a ti. Ainda não sou capaz. O tempo há-de sempre escassear. Tenho dúvidas e continuo albergada na tua memória, porque assim finjo que o tempo não me rouba a memória que não deixa este pedaço do meu coração vazio”.



(...)"De tudo ficaram três coisas:

A certeza de que estamos sempre começando...

A certeza de que precisamos continuar...

A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...



Portanto, devemos: Fazer da interrupção um caminho novo... Da queda, um passo de dança... Do medo, uma escada... Do sonho, uma ponte... Da procura, um encontro."



(Fernando Pessoa)

À Sagrada Família

7 Novembre 1982
Record del Pas D. S S Joan Pav II
Son seves les paravles:

Aqvest temple de la Sagrada Familia recorda vna altra constrvcció feta amb pedra viva: “la familia cristiana”


O edifício ergue-se imponente entre os prédios de Grácia, que o cercam em berço de arte. Começo a calcorrear as pedras da calçada até à entrada metálica. Olho para cima, onde as núvens partilham o céu com as cinzentas torres de reentrâncias. Ouso entrar e fazer parte da obra. Vejo homens que se confundem uns com os outros numa correria de metais e pó, reconstruindo o passado, fazendo futuro, erguendo a Sagrada Família. Nas paredes movem-se as sombras de figuras de pedra. José, Maria e o Menino Jesus, multiplicados em várias fachadas, com faces de amor e uma pena estranha que acho em todos eles, como que a antever o destino da humanidade. As mãos são finas, graciosas, articuladas em perfeita harmonia entre as vestes ondulantes. Os ateus também sentem o coração perdido, por isso entrei e senti-me acolhida pela História. Os pés exitam-me na pedra gasta, fazia frio lá dentro, os altos pilares desabrochavam no tecto em palmeiras, mostravam os seus troncos cortados, iluminados por vitrines de flores solares. Havia uma luz filtrada pela magia das cores vitrais que tornam aquela floresta cristã, juntamente com as pessoas, ainda mais densa. Jurava que ouvia o vento por entre os pilares que agitavam ao ritmo da minha imaginação. Quis seguir sozinha o caminho, não sou capaz de explicar a beleza do silêncio que sentia no peito, a admiração dos meus olhos brilhantes, esta amargura de ser humana, a melancolia de um fim de tarde, esta coisa de sentir um Fado cá dentro que cabia tão bem dentro daquelas paredes. E sozinha fui. Tinha saudades de mim. Estava protegida alí. Gaudí certificou-se disso. Continuei embrenhada em algo que não se explica. Não era fé nem tão pouco vontade de extinguir os meus desejos no pavio de uma vela reciclada. Não era ouro, nem hóstias nem o sinal da Santa Cruz. Seria arte? Seria a reinvenção da Natureza? Acho que era apenas o resultado inacabado da tentativa de um Homem: construir com a razão um templo para abrigar corações. Para juntá-los numa celebração da Natureza e das coisas grandes e bonitas, como Cristo. Mas Cristo não o encontrei ali, encontrei-o no metro a caminha de casa, dentro de mim e em toda a gente de boa vontade.
O destino da Humanidade…há-de ser o que Deus quiser!